Clubes filiados à federação de futebol do Rio de Janeiro, a Ferj, aprovaram na quinta-feira a assinatura de um contrato com a Record para a transmissão do Campeonato Carioca. Pela primeira vez em muito tempo, a competição não será exibida pela Globo.
Essa negociação tem consequências que vão muito além do futebol carioca. Com uma nova estrutura comercial, o Carioca será uma espécie de laboratório para um novo modelo de venda dos direitos de transmissão, e consequentemente de distribuição do dinheiro.
O contexto
Até 2020, os direitos de transmissão do Campeonato Carioca "valiam" R$ 120 milhões. Esta era a quantia que a Globo desembolsava para ter a competição em todas as plataformas: televisão aberta, fechada e pay-per-view. Além disso, bloqueava a possível transmissão em streaming.
Grosseiramente, a distribuição da verba previa R$ 15 milhões anuais para cada um: Botafogo, Flamengo, Fluminense e Vasco. Os R$ 60 milhões restantes eram depositados na conta da Ferj, que por sua vez distribuía parte disso para os demais clubes e em premiações.
Botafogo, Fluminense e Vasco tinham contratos assinados até 2024. O Flamengo, já na administração de Eduardo Bandeira de Mello, optou por fechar somente até 2019. A diretoria rubro-negra acreditava que poderia conseguir um valor maior na negociação seguinte.
Após a transição para a direção de Rodolfo Landim, a postura rubro-negra se tornou mais ousada. Baseada na ideia de que o pay-per-view estava subdimensionado, no pagamento da Globo, a diretoria pediu várias vezes mais do que recebia até então para fechar. A Globo negou.
O Flamengo estava acuado pela Lei Pelé, que obriga a "anuência" de mandante e visitante para a transmissão de uma partida, pois todos os adversários tinham vendido seus direitos para a Globo. Houve, então, a Medida Provisória 984/2020. Em aliança com o presidente Jair Bolsonaro, a diretoria conseguiu uma mudança temporária para vender seus direitos no Carioca de 2020 mesmo sem a anuência do visitante.
No momento em que o Flamengo fez a transmissão de partidas do campeonato estadual, valendo-se da MP 984, a Globo entendeu que seus direitos haviam sido violados, pois detinha os direitos de visitantes. A emissora rescindiu unilateralmente os contratos com a Ferj e demais clubes, dizendo que eles não tinham sido capazes de entregar para ela, a emissora, aquilo que havia sido combinado previamente.
Para encerrar disputas judiciais com Botafogo, Fluminense e Vasco, a Globo pagou R$ 15 milhões pela rescisão em dezembro. Com a federação não houve acordo, então a questão ainda está aberta.
A negociação
Como os contratos que valeriam até 2024 foram rescindidos no meio dessa disputa, a Ferj e os clubes tinham de refazer a venda dos direitos de transmissão de 2021 em diante. Neste ponto, a federação buscou um profissional que trabalhou por mais de duas décadas na própria Globo, Marcelo Campos Pinto, para que ele a auxiliasse na negociação.
O executivo recebeu da Globo uma primeira proposta para recomprar o estadual. A emissora propunha pagar R$ 13 milhões fixos e 35% da receita líquida sobre o pay-per-view – ou seja, depois de descontados impostos e a parte que fica com as operadoras do sistema. A Ferj negou.
A segunda oferta da Globo foi de R$ 40 milhões ou 38% brutos do pay-per-view, o que fosse maior. Além disso, os clubes e a federação desistiriam de mover ações judiciais envolvendo os contratos anteriores. A soma das duas coisas ficaria próxima de R$ 45 milhões.
A Ferj e os clubes, por meio de Campos Pinto, recusaram a segunda proposta e a tomaram como base para avaliar o produto Campeonato Carioca. As entidades entendem que podem conseguir uma quantia igual ou maior do que a ofertada a partir da separação das plataformas.
A estrutura que preveleceu, então, foi a seguinte. Na televisão aberta, os direitos foram negociados por R$ 11 milhões com a Record. Esta quantia deverá ser dividida pelos clubes. Houve também um acordo para que no ano que vem, em 2022, este valor aumente para R$ 15 milhões. Pois até lá a emissora terá tempo para encontrar mais anunciantes no mercado.
A federação e os clubes ficaram com os demais direitos. Eles montarão um sistema de pay-per-view em parceria com as operadoras – Claro, Vivo e Sky –, segundo o qual ficarão com 53% das assinaturas.
Quanto essa parcela, do pay-per-view, pode proporcionar às associações? O valor é incerto, mas os responsáveis estimam R$ 30 milhões. As operadoras, que detêm dados dos consumidores do Premiere, vão procurá-los para que assistam ao Carioca.
Existem algumas linhas de arrecadação complementares. A federação fará a transmissão das partidas em streaming, simultânea à televisão aberta, e nela poderá exibir as marcas de até três patrocinadores: um comprador dos naming rights, o direito de nomear a competição, e dois anunciantes de infográficos de tela. Somando com direitos internacionais e para o segmento de apostas, a expectativa é arrecadar R$ 20 milhões.
Essas receitas serão divididas com critérios diferentes. Na televisão aberta, os quatro grandes deverão ter cotas iguais. No pay-per-view, os clubes receberão de acordo com a base de assinantes. Flamengo muito mais, provavelmente, e Botafogo e Fluminense muito menos.
Ressalta-se, ainda, que a arrecadação ainda precisa bancar a produção do conteúdo. A imagem a ser transmitida pela Record, pelo streaming e pelo pay-per-view será gerada pelas entidades – assim como fazem a Fifa e a Uefa, por exemplo, com Copa do Mundo e Liga dos Campeões. No modelo anterior, esse custo ficava com a Globo.
A esta altura, cabe uma reflexão: o novo modelo determinará o preço do espetáculo. O valor-base anterior, de R$ 120 milhões na soma de todos os clubes e federação, não parece fazer sentido. Em partes pelo contexto imposto pela pandemia do coronavírus, também pela decadência dos campeonatos estaduais. Fato é que, na combinação dos valores de cada plataforma, o mercado ditará quanto vale o "novo" Carioca.
O futuro
No quadro mais abrangente, que interessa a todo o futebol brasileiro, o Campeonato Carioca corresponde ao experimento que determinará como será a estrutura dos direitos de transmissão no país.
O modelo atual se baseou todas essas décadas em exclusividade. A Globo gasta e gastou muito dinheiro para ter o domínio de todas as plataformas, pois a partir delas teve como rentabilizar o produto a partir de anunciantes e assinaturas. A companhia era, também, a única com porte para transmitir tudo: na Globo gratuita, no SporTV e no Premiere.
Era graças a essa estrutura comercial que a emissora conseguia pagar R$ 120 milhões por um campeonato estadual, como o do Rio de Janeiro, que até então foi transmitido para o próprio estado e também para boa parte do país – de Minas Gerais para cima, inclusive parte do Nordeste.
A fim de arrecadar mais com o pay-per-view, ao tirar a Globo da intermediação e trabalhar diretamente com as operadoras, os clubes assumiram o risco em relação às outras plataformas. A proposta da Record é muito menor. Em contrapartida, ela não amarra a venda.
O que acontecerá caso o pay-per-view do Campeonato Carioca bata a expectativa dos R$ 30 milhões arrecadados? Brilharão os olhos de dirigentes em relação à próxima negociação, a mais difícil, e a mais importante, que trata do Campeonato Brasileiro a partir de 2025.
Esta conta não será fácil de fechar. Preços ainda não foram definidos, mas devem ficar próximos de R$ 49,90 por mês. Menos do que os R$ 89,90 que a Globo costumava cobrar no Premiere, porém apenas pelo Campeonato Carioca, não por todas as competições. Muito mais do que Netflix, Amazon Prime e similares cobram em outros entretenimentos.
Quantos assinantes serão necessários para cumprir as projeções financeiras? 500 mil assinantes, a R$ 49,90 cada um por mês, numa competição que durará dois meses, podem proporcionar um faturamento de R$ 50 milhões. Mas lembre-se que federação e clubes ficarão com a metade disso, pois outras partes precisam pagar impostos e remunerar as operadoras. Não são números tranquilos de alcançar.
E o que acontecerá caso o pay-per-view do Carioca seja um fracasso? Pontos de interrogação serão colocados sobre as ambições de um grupo de dirigentes. Dificilmente haverá como retroceder aos valores praticados antes da pandemia, como o estadual em questão deixou claro. Nem tampouco haverá clareza do caminho a seguir nos direitos que importam: os do Campeonato Brasileiro. Tudo está em jogo.
Fonte: Blog do Rodrigo Capelo - ge
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